Soube da história através de um grupo de mulheres online e tocou-me imenso, pedi à M. para partilhar convosco. Por saber que hà tantas crianças que passaram e que estão a passar pelo mesmo agora mesmo, neste instante e tantos adultos que se calam porque sempre se calaram... foi-lhe ensinado a fingir que não se passou nada. Porque eu também sou uma delas e quero fazer parte do processo de cura. Muito grata à M. pela coragem desta partilha, como ela diz "É dificil relembrar o que sofremos"
"É difícil relembrar tudo o que sofremos.
Os meus pais sempre trabalharam muito.
Acho que o faziam por nós, mas eu nunca acreditei nisso. Por que raio uma coisa que era para o meu bem, me deixava tão triste?
As melhores memórias de infância que tenho, são dos dias que passava com
a minha avó, onde podia ser criança e brincar despreocupada.
Os meus pais saíam de madrugada e eu lembro-me, desde muito pequenina,
de acordar durante a noite e fazer uma cama à porta do quarto deles,
para que não pudessem sair sem mim. É claro que, quando acordava, eles
já lá não estavam.
Nas raras ocasiões em que estávamos todos em casa, eu tinha
de manter o silencio, e acabava sempre por brincar sozinha na rua ou no
meu quarto.
Percebi bem cedo que as minhas chamadas de atenção só
geravam gritos de reprovação e ameaças. Aprendi a isolar-me, a calar-me,
a criar o meu próprio mundo porque tinha de viver em algum lugar.
Tenho
memórias nítidas desde cerca dos meus 4 anos. Na verdade, só havia
alguma paz quando o meu pai não estava.
Demasiadas vezes quando o meu pai chegava a casa, sempre tarde, do vinho
e das mulheres como dizia a minha mãe, ou dos amigos e clientes de
futuros negócios como dizia ele, encontrava um motivo de discussão e
batia-lhe. Chegava a ser a noite inteira naquele inferno, entre gritos
nossos (meus e da minha irmã) e mais tarde só meus (quando ela decidiu
ir estudar para outra cidade), muitas lágrimas e corridas.
A minha mãe corria à frente do meu pai com a minha irmã atrás dela, e eu
era a última, que corria atrás do meu pai para o agarrar e não o deixar
bater-lhes.
Agarrava-lhe nos braços e gritava que não o fizesse, por
favor, ou dizia-lhe que ele era um monstro e que o odiava, ou então
ameaçava ligar para a polícia. Nunca liguei. A minha mãe pedia-me por
tudo para não o fazer, quando eu tinha o telefone na mão trémula, como
me pedia para não me meter. Aos poucos fui-lhe fazendo as vontades.
Ele dava-lhe tareias enormes e eu comecei a interiorizar tudo, guardando tudo cá dentro como uma bomba relógio.
As violações, por vezes, aconteciam depois de ele lhe bater. Eu saía da
minha cama onde tinha estado a chorar e ficava a ouvir. Ouvia-a chorar e
dizer não, a cama ranger, mas queria continuar a ouvir porque isso
significava que ela estava viva. Só quando ele acabava e adormecia é que
eu voltava para a cama, apenas para chorar o resto da noite ou
adormecer exausta. Hoje sei que a minha mãe sabia que eu estava a ouvir.
Por incrível que pareça, o meu pai nunca me bateu. Até hoje não sei
porquê. Mas uma noite eu defendi a minha irmã, na cozinha, e ele veio na
minha direção com uma faca apontada à minha barriga, e dizia que me
matava. Não sei bem que idade tinha, mas era adolescente. Sei que corri,
peguei numa caneca do escorredor da loiça e lha atirei à cara. Fugi.
Elas já tinham fugido e eu estava sozinha. Ele ficou com uma pequena
cicatriz e passou muitos dias sem me dirigir a palavra. A minha mãe
fez-me sentir que tinha errado...
Eu ia para a escola, todas as manhãs, à boleia do meu pai.
Muitos dias chegava atrasada porque eles ainda discutiam, e pelo caminho
ouvia-o falar mal da minha mãe, e chamar-me burra a mim. Eu era uma
óptima aluna, notas máximas e nos quadros de excelência da escola. Tinha
imenso potencial e uma paixão enorme por algumas áreas, uma série de
sonhos. Que foram acabando quando a depressão se foi adensando. As notas
pioravam, eu colocava uma máscara todos os dias para que ninguém
notasse nada na escola. E consegui. Até já no secundário quando tentei
suicídio e abandonei a escola. Fiquei algumas vezes de cama, sem falar,
só chorava e gemia e morria de dores.
Entretanto encontrei o meu companheiro de hoje, e descobrimos que o meu
pai tinha outra filha, de outra mulher. A criança já tinha 4 anos, e a
mãe tinha acabado de falecer com cancro. Foi a primeira vez que a minha
mãe saiu de casa, e nessa altura ele já não lhe batia... Saiu porque ele
queria que a menina viesse viver connosco em vez de ficar com os tios, e
isso, isso a minha mãe não aceitou.
Saí da casa dos meus pais aos 18 anos, exausta e com a
sensação de que, se ficasse, morria. Aceitei trabalhar com o meu pai,
saí depois de muitas discussões, e voltei poucos anos depois, quando o
meu filho nasceu. Tenho muitas feridas para curar com este homem, e faço
esse trabalho diariamente. Muitas vezes fico na dúvida sobre se estou a
fazer o que tem de ser feito para poder libertar-me verdadeiramente, em
vez de fugir de novo, ou se estou simplesmente a seguir o padrão de
mártir que aprendi.
Tantas vezes sinto que a forma como lidamos uns com os outros fazendo de conta que nunca se passou nada, é demasiado sufocante."
M.
É
mentira dizer que as crianças não notam, não vêem, não compreendem. Se
elas se escondem e se calam é pelas razões que a M. explica tão bem. O
que podemo fazer por elas? O que podemos fazer por estas famílias?
Estes pais são loucos? Não, mas estão muito doentes e precisam ajuda. As
consequências destas situações ficam connosco para sempre junto com a a
consciencia de que ninguém fez nada para nos ajudar, as consequências
não passam por si com o tempo. Negar isso é uma violência tão grande
como a que já sofremos.
A
violência doméstica não é um assunto do casal, os filhos não são apenas
responsabilidade dos pais, são de toda uma comunidade. As soluções
punitivas dificilmente funcionam, precisam-se soluções reparadoras,
curativas.